Marcos Alexandre Margotti Izé: Produções de Alexander De Melo Luiz

ALEXANDER

Alexander de Melo Luiz, formado em psicologia pela Unesc, e sempre dando asas a imaginação, adentrou no mundo da literatura através do livro Detritus: Guerra Celestial. A partir daí enveredou para outros generos como o romance, donde destacam-se seus contos. Enfim, alguém com a anteninha sempre ligada, e que procura através da inspiração (e transpiração!) juntar emoção e técnica numa escrita elegante.

Sonho de Ícaro

Um garoto andando pelo parque, era o que via o velho comandante aposentado da força aérea. O idoso utilizava um bonezinho de couro e jogava pipoca aos pombos bem ao estilo dos velhinhos de desenho animado.  Parou bruscamente com a sua atividade monótona quando observou as pernas do moleque. Não que ele vira duas pernas, a palavra na verdade seria muito mais bem empregada se estivesse no singular. Tomou um susto nem tanto pelo fato do garoto possuir uma perna artificial e mais, pela desenvoltura com que o rapaz conseguia se locomover com aquela perna mecânica. “Uma perna de Robocop” – imaginou o velho consternado com a destreza do moleque – mas não igual ao Robocop de Verhoeven, que possuía movimentos lentos – estava mais para o Robocop adaptado por José Padilha.

Olhou para o lado do banco onde descansava a sua bengala. O velho sabia que muito útil era ela, mas se comiserava pelo fato de mesmo assim ter dificuldades em andar. “Maldita queda que fraturou a minha bacia!”, reclamava com os seus botões. Seus filhos imediatamente quiseram que ele morasse com um deles ou então que aceitasse, pelo menos durante o dia, a companhia de um neto espoleta de 12 anos. “Nem pensar” – dizia ele aos filhos -, “do jeito que esse garoto é estovado vai é me fazer quebrar as duas pernas”. Os filhos suspiravam, e tinham de aceitar a teimosia do patriarca. Quando adulto nada no mundo fazia ele mudar de opinião, agora próximo ao octogésimo ano, isto aconteceria só por um milagre.

O que notou consternado é que o garoto vinha em sua direção, sorrindo só como os garotos ingênuos de 13 anos sabem sorrir. Os pombos acompanhavam os seus passos, enquanto fazia uma trilha de pipocas no chão.

Quando chegou perto do homem octogenário, pediu licença.

Mais que depressa, com a mesma destreza de seus tempos de outrora, o velho tirou sua bengala do banco e a pôs dentre as pernas; seu tronco vergado pra frente, fazia crescer um pouco mais a sua cacunda. Assim que sentou-se o garoto começou a distribuir pipoca aos pombos.

  • Gosto dos pombos – disse casualmente.

O ex-comandante da força aérea permaneceu calado. Simplesmente olhou curioso para as pernas do rapaz. Se surpreendeu com a flexão da prótese, e suspirou ao pensar em sua artrite. “As articulações da perna mecânica podem até quebrar, mas aí é só trocar a peça e pronto” – isto soou muito prático aos olhos do velho. Imaginou-se sugerindo ao médico: “senhor, que tal trocarmos as articulações?” E ele responderia: “pernas de carne e osso são um modelo muito singular, não existem peças que possam ser trocadas”. E depois receitaria aqueles malditos anti-inflamatórios e remédios para dor, que de nada adiantavam.

  • São de titânio – comentou o garoto quando notou que a atenção do idoso se detinha sobre sua perna mecânica. Envergonhado o velho olhou para o jovem. Mas este não esboçava nenhuma reação contrariada, pelo contrário, sorria.
  • É como vestir sapatos – dizia sempre a minha mãe – naturalmente eu acreditei nela.        – Mas deve ser difícil ser… – o velho conseguiu evitar a palavra. Mas não veio nenhuma outra em sua cabeça que pudesse ser usada, então permaneceu calado, olhando de maneira aparvalhada para o garoto.

  • Se é difícil ser aleijado?

  • Oh! Não! Não queria ofender-te – desdisse o idoso.

Em seguida, reparou no garoto. E viu seu olhar, vazio e triste, a observar um pombo branco que alçava voo e ganhava os céus. “Que velho atrapalhado, sou! Atrapalhado e rude!”, se autoflagelava, achando que a tristeza do rapaz se dera devido as suas insinuações. Lembrou-se que guardava em seu bolso um bombom, e para amainar um pouco sua própria culpa, ofereceu-o ao menino.

Este, com um leve sorriso o pegou, e em seguida, guardou-o em seu bolso.

  • Os pássaros é que realmente são felizes – disse o garoto.
  • Oh, sim! Não tem que trabalhar pela comida –  brincou o velho, enquanto jogava um punhado de pipoca para os pombos. Uma das aves daquele bando alçou voo e o olhar do jovem novamente reposou sob o pombo que voava.

  • Oh! Não! Não são felizes por conta disso. São felizes porque podem voar.

  • E então, abruptamente, o jovem se levantou e tirou de dentro de sua bermuda uma revista. Folheou algumas páginas e quando achou a que queria mostrou-a para o velho. Era uma página, repleta de ilustrações de aviões, que iam desde aqueles usados na Primeira e Segunda Guerras Mundiais até os mais contemporâneos.

    • Um dia voarei neste daqui – comentou alegre indicando um Biplano vermelho da década de 30. – Neste se sente o vento no rosto, como os pássaros ao voar.

    O velho, vendo aquele sorriso expansivo e aqueles olhos brilhantes não conseguiu ficar indiferente. Soube, naquele momento, que nutria certa simpatia pelo menino.

    • Você é muito alegre, apesar de ser um aleijadinho.

    “O meu deus! Você disse a palavra! Seu velho burro e idiota! Vou-me indo, assim poupo este jovem de minha ignorância” – em seguida, levantou-se do banco com o intuito de ir embora.

    • Desculpe! Por favor, não ligue para o que um velho burro e idiota diz.
  • Bem, o senhor poderia dizer muitas coisas: deficiente físico, portador de necessidades especiais, perneta, saci pererê. Bem, meus colegas me apelidaram disso, antes de eu utilizar a prótese. Agora me chamam de ciborgue, confesso que não ligo, até gosto deste apelido. Me lembra o Robocop e o Exterminador do Futuro, ambos são fortes, não?

  • O velho simplesmente assentiu com a cabeça.

    • Não importa quão duras sejam as palavras, o fato é que eu perdi uma das pernas e palavra nenhuma irá mudar isso. Mas prefiro pensar sobre outras coisas.
  • Sobre aviões, eu imagino.

  • Tenho planos de voar num destes, quem sabe como piloto, mas se for como caroneiro, acho que também seria legal.

  • O idoso, então com um breve aceno se despediu e depois de dar dois passos, sentiu que seus sapatos não saíam do lugar. Estes haviam encontrado terreno úmido e ato contínuo, começaram a derrapar. O velho fazia uma força descomunal para evitar a queda, mas quanto mais força fazia mais seus pés iam para trás. Observando todo o ocorrido o garoto imaginou que o velho iria cair um sonoro tombo. Contudo, instintivamente, o ex-comandante da aeronáutica, desenterrou seu velho reflexo de piloto que há muito estava enterrado, e o utilizou em proveito próprio: a bengala à frente de seu corpo; as duas mãos fortemente agarradas ao cabo imprimiam a força necessária para que ela se firmasse no chão e não movesse um centímetro. Desta forma, a bengala sustentou todo o peso do corpo que se projetava de encontro a ela.

    O guri espantado com o reflexo rápido do velho, observou que sua manobra fora bem sucedida. Uma vez passado o susto, o velho encostou a mão direita na cintura, e apesar de ileso, em meio a sua rabugice, reclamava de algo.

    • O senhor está bem? – perguntou o rapaz.
  • Oh! Esta maldita dor na bacia começou de novo!

  • Vejo que sua bengala quebrou.

  • Em seguida, o garoto ofereceu o braço para que o velhinho entrelaçasse o seu.

    • Você conseguiria fazer isto apesar de seu… digamos, problema?
  • Claro que sim – disse o moleque.

  • Então o ex-comandante da força aérea entrelaçou seu braço no do garoto. Ele notou que tranquilamente o menino o levava, sem pressa, respeitando os seus passos.

    • Você realmente não é nada estovado, meu rapaz! Tenho um neto que apesar de ter duas pernas não tem paciência nenhuma em lidar com velhos. Na verdade, não passa de um estovado!
  • Vou levar estas palavras como um elogio.

  • E são. Mas me diga como você irá realizar o seu sonho.

  • E o garoto lhe contou que pai e filho há mais de dois anos procuravam em diversos hangares por um avião ideal, do tipo que ele queria. Mas que o sonho ainda não tinha sido concretizado porque não haviam achado o modelo imaginado.

    Foi então, que o velho comandante aposentado da força aérea se lembrou de certo avião que batia com as características que o garoto queria. Estava em um certo hangar dum amigo seu, meio esquecido é verdade, mas julgou que com uma pequena manutenção poderia alçar voo sem problemas.

    • Sei onde você poderá encontrar o avião que quer.

    O rapaz sorriu.

    • Espero poder dar uma voltinha nele.
  • E você dará! Nem que este velho raquítico tenha que pilotar o avião.

  • E os dois, velho e adolescente, naquele momento esqueceram seus sofrimentos, enquanto conversavam placidamente sobre modelos de avião.

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