Marcos Alexandre Margotti Izé: Alfa 23

DeCastro é o filho mais novo de uma família judia. Aos 14 anos frequentava bacharel em teologia, tendo alcançado aos 21 os títulos de filósofo, sociólogo e teólogo. Atualmente é membro de dois grupos de pesquisa, sendo um deles destinado a estudos sobre educação, sociedade e formação cultural. Estudou algumas disciplinas de direito, física e psicanálise. Tem na escrita- como já dito no prefácio do seu terceiro livro- a fuga da realidade, pois é um imprestável fazedor de outras coisas.
DeCastro é o filho mais novo de uma família judia. Aos 14 anos frequentava bacharel em teologia, tendo alcançado aos 21 os títulos de filósofo, sociólogo e teólogo. Atualmente é membro de dois grupos de pesquisa, sendo um deles destinado a estudos sobre educação, sociedade e formação cultural. Estudou algumas disciplinas de direito, física e psicanálise. Tem na escrita- como já dito no prefácio do seu terceiro livro- a fuga da realidade, pois é um imprestável fazedor de outras coisas.

 

    Alfa 23

Nas trincheiras de uma guerra, acabam-se o cigarro, a bebida, a esperança e a vida. Não há muito ao que se apegar. Traz-se consigo uma bíblia, caso Deus exista e se compadeça da alma do pobre assassino, e bebidas, caso ele não exista, ou não perdoe quem mata. Escrevo essas notas em folhas soltas e amassadas que trago em minha calça.

Não cavamos apenas trincheiras, um lugar para se proteger. Cava-se a própria sepultura. Corpos que outrora amavam, falavam palavras carinhosas e recitavam poesias, agora não passam de um monte de merdas secas.  Meu sargento se fora e todos os patentes altas também. Restamos apenas eu e o soldado Saracovitch do grupo de patrulha Alfa 23. Todos os outros se foram. Deixaram sonhos, família e saudade. A guerra é o próprio inferno.

Escrevo essas linhas memoriáveis como fuga do terror que é esperar para morrer. Decidimos, eu e Saracovitch, que não adiantaria resistir, que seria força empreendida sem sucesso.  Então, escoramos-nos na parede da trincheira e nos ocupamos da melhor forma possível a espera do inimigo. Eu escrevo e bebo, uso a bíblia apenas como suporte para o papel. Meu camarada está em um canto, imóvel, há horas,num estado de transe. YohananSaracovitch leu as sagradas escrituras por cinquenta minutos a fio antes de seu atual estado.

Seu corpo está rijo e esbranquiçado. Mesmo estando um calor dos diabos, 45 graus, Saracovitch bate o queixo, provavelmente sentindo com antecipação a dor a que será submetido quando for pego.  Eu já sou mais otimista: “quando me pegarem, espero que seja um atirador dos bons e que crave uma bala bem no meio da minha testa”. Saracovitch me ouve e me olha com horror.

“Você é cruel”, diz ele.  Não acho que seja. Estou com tanto medo quando ele, mas sei do inevitável. Aceitar o que é fatal é reconhecer a supremacia da vida.

Jogo o cantil para meu camarada. Yohanan não pega. Deixa com que o desgastado utensílio se choque contra uma pedra e se parta ao meio, derramando a única água que nos sobrou. “Imbecil”, gritei, mas YohananSaracovitch não se mexeu, continuou teso como a rocha que se chocou contra o cantil.

Meus pensamentos fluem. É fácil escrever quando a única preocupação é a morte. O inimigo está com fortes aliados e ouvi dizer pelo rádio que uma patrulha de reconhecimento está a três quilômetros e conta com um efetivo de dez homens. Estamos em dois. Melhor: estou sozinho. Nossas baixas são muitas.

Saracovitch não para um minuto sequer de se debater. Agora, não treme mais o queixo, apenas, mas também todo seu corpo. Parece em convulsão.  A consciência da morte é que nos assassina. Sirvo-me da última dose de uísque e ofereço um gole ao miserável, que recusa prontamente.  Continuo escrevendo. Até onde, não sei. Talvez até daqui cinco parágrafos, treze linhas, ou ainda nem dê tempo de terminar essa oração completa. Deu. Escreverei até o destino mo conceder.

YohananSaracovitch tem um espasmo e começa a babar e tremer os pés.  Em seguida, as pernas e logo o ataque toma-o por completo. Corre de um lado para o outro com os braços erguidos e balançando no ar. Debate-se convulsivamente contra a rocha que quebrou o cantil. Largo tudo e vou acudi-lo. O seguro com força e depois de uns dois minutos ele começa a se acalmar e logo está amontoado e teso novamente. Um filete de sangue escorre de sua testa e marca seu rosto. O sangue cai no chão e mistura-se ao barro da trincheira. YohananSaracovitch não se move. O soldado está morto.  A morte precipitou-se para ele.

Minha boca seca.  Preciso beber algo, mas esgotaram a água e o uísque. Olho o corpo inanimado e sujo de meu amigo combatente. O sangue ainda lhe corre o rosto. Com o rifle tiro uma lasca da rocha que partira o cantil e o crânio de Saracovitch. Fecho os olhos de meu amigo que permaneciam abertos, como uma forma de respeito e lhe desfiro um golpe na cabeça com a ponta da lasca da pedra. O sangue jorra aos borbotões.  Bebo seu sangue.  Alivio minha sede e unto meu espírito. Ouço no rádio que a patrulha chegara, termino de escrever esse texto, coloco no bolso de meu amigo, na esperança de que alguém o encontre. Subirei a trincheira atirando a esmo.

DeCastro

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