A arte de botar gente no mundo

Bernadete Romagna Macarini foi uma das parteiras que se dedicou a atender as mulheres de Nova Veneza em outros tempos

Tadeu Spilere/Jornal Nossa Gente

Segundo o escritor Mário Souto Maior, no livro “Como nasce um cabra da peste”, parteiras são mulheres detentoras de conhecimento sobre “a arte de botar gente no mundo”. De acordo com o Ministério da Saúde, elas ainda existem em número expressivo, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do país. Aqui no Sul, inclusive em Nova Veneza, foram importantes na vida de muitas pessoas, que guardam na memória a dedicação e o carinho junto ao serviço prestado.

Em outros tempos, o acesso das gestantes a hospitais contemplava muitas dificuldades, principalmente para quem morava no interior. Além dos problemas de locomoção, existiam os custos, que significavam uma grande barreira para colonos sem muitas condições financeiras.

Diante deste contexto, algumas mulheres ganharam importância em Nova Veneza por adquirirem conhecimentos sobre o processo de gestação e sobre os partos. Foram fundamentais na vida de muitas famílias e deixaram muitos afilhados, que reconhecem até hoje a relevância destas profissionais.

Muitas crianças nasceram nas mãos de Bernadete Romagna Macarini. Cada frase, cada história contada por ela deixa claro o amor por aquilo que dedicou a vida. A veneziana, que hoje mora em Criciúma, perdeu a conta dos partos caseiros fez, mas sabe muito bem o quanto cada um deles foi importante.

Após um curso de enfermagem e obstetrícia, realizado em Florianópolis no início dos anos 1960, Bernadete foi trabalhar no Hospital Santa Catarina, mas depois de dois anos passou a atender nas casas, de forma independente, prática que manteve em Nova Veneza durante nove anos.

“Lembro muito bem do primeiro parto que fiz fora do hospital, pois foi muito significativo. Foi da dona Cecília Milanez e a filha era a Teresa. O médico da cidade pediu para eu ir, já que sabia que eu tinha condições. E deu tudo certo. Dona Cecília ficou muito grata e depois fui madrinha de crisma da Teresa”, lembra.

Além do momento do nascimento, a parteira acompanhava as mulheres grávidas e as orientava quanto a cuidados importantes. Segundo ela, todos os procedimentos eram realizados com o máximo de higiene e com os materiais necessários.

“De todos os atendimentos, em apenas duas ocasiões as mulheres precisaram ir para o hospital. Não tinha como nascer em casa, pois os bebês estavam mal posicionados e poderia haver problema maior”, ressalta Bernadete.

E experiências enriquecedoras não faltaram para a profissional da saúde. Ela lembra, por exemplo, de um fato interessante que aconteceu quando ainda trabalhava no hospital. “Em uma noite nasceram 22 crianças em apenas duas horas. Na época, o acontecimento chamou muito a atenção e vieram jornalistas até de outros países”, conta.

Apesar das adversidades, a dedicação à causa

Não foram poucos os casos em que Bernadete precisou enfrentar muitas dificuldades para realizar o seu trabalho

Em casa com o primeiro filho, que tinha apenas 11 dias, Bernadete estava acamada, com muita febre. Mesmo assim, teve que enfrentar as piores adversidades para não deixar de atender quem precisava. Ela lembra deste caso pelos momentos dramáticos que o envolveram.

“Já era tarde da noite quando um homem chegou lá em casa desesperado. De joelhos, ele pediu que eu fosse fazer o parto da mulher dele, já que não tinha dinheiro para levá-la ao hospital. Eu estava doente, com o filho recém-nascido e, além disso, fazia frio e chovia muito naquela noite. Mas não tinha como negar e então pensei: ‘eu vou’. Lembro que ele morava bem no interior e tivemos que passar por muito mato até chegar a casa. No final, deu tudo certo”, conta.

A parteira atendia as mulheres por todo o município, incluindo as localidades mais distantes. Em outros tempos, sem as condições que existem hoje, as dificuldades eram evidentes, desde a locomoção até o tratamento propriamente dito. “Apenas uma vez não pude ir. Estava sozinho em casa com os filhos pequenos e realmente não tinha como sair”, ressalta.

A entrega e a realização

A função de parteira ficou em Nova Veneza, mas a dedicação às pessoas continua até hoje. Em Criciúma, Bernadete trabalhou 22 anos em posto de saúde, e mesmo aposentada há 19 anos, ela exerce a função de voluntária na cidade.

A senhora, que hoje mora no bairro Universitário, não esconde o orgulho da profissão que defendeu por muitos anos. As muitas e muitas mulheres atendidas por ela guardam a gratidão. “Um dia desses uma menina de 16 anos veio falar comigo. Estava grávida e a mãe dela havia me indicado, falado que ela precisava ser atendida por mim. Falei que não era a minha função naquele momento e então ela começou a chorar, dizendo que tinha que ser comigo”, declara.

Bernadete ainda encontra constantemente em Nova Veneza as antigas pacientes e também os diversos afilhados. “Acho que fiz muita coisa boa nessa vida. Um trabalho muito importante, sempre feito com muito amor. Tanto que em 31 anos nunca peguei uma licença”, diz.

As experiências e lições são passadas para os mais novos da família. “Sempre digo para os meus netos: ‘vão estudar o que vocês gostam que tudo vai dar certo. Não vai cansar nunca’”, aconselha a aposentada.

Além de Bernadete, outras parteiras trouxeram ao mundo muitas crianças em Nova Veneza. Ela é, sem dúvida, mais um personagem muito importante na construção histórica do município. Uma das pessoas que se dedicou ao Outro e que faz parte da identidade do povo veneziano.